Em mais uma reação ao "Manifesto dos 70",
que tão nervoso deixou o governo, Passos Coelho disse que ele revela "uma
concepção infantil, nem sequer é política, da Europa". Infantil porquê?
"Estão a falar de uma Europa que não existe, nem existirá e ainda bem,
porque ninguém aceitaria uma Europa em que uns poupam para que outros possam
gastar".
Repare-se que Passos não apela a um suposto realismo. Ele diz que
ainda bem que a tal Europa não existe. E explica que essa Europa que felizmente
não existe é aquela em que uns poupam e outros gastam. A dicotomia não é entre
credores e devedores, centro e periferia, economias mais e menos desenvolvidas.
Nada disso. Ele remete-nos para distinções éticas. Uns são poupados, outros
gastadores. Eles vítimas pacientes, nós abusadores infantilizados.
Podia discutir a infantilidade (devolve-se o epíteto)
deste ponto de vista. Mas isso obrigar-me-ia a descer o nível intelectual do
debate até à imbecilidade. Não consigo.
Poderia mostrar, através de quase todos
os dados fundamentais, como este preconceito racista (estou a medir as
palavras) é contrariado por quase todos os factos. Mas isso só faria sentido se
estivesse a discutir com alguém que não conhece a realidade do País. O
preconceito perdoa-se ao ignorante. Podia indignar-me com a utilização de
estereótipos como arma política. Mas isso só faria sentido se estivesse a
debater com um qualquer político estrangeiro e me visse obrigado a defender o
bom nome de Portugal. Na realidade, tal como disse Constança Cunha e Sá, apenas um líder de um partido de extrema-direita do norte da Europa teria
o desplante de fazer este tipo de simplificação das relações entre Estados
membros da União Europeia e lançar este anátema sobre os países periféricos.
Acontece que esta frase é do primeiro-ministro de Portugal. É ele, e não Angela
Merkel ou mesmo Marine Le Pen, que se encarrega de alimentar o preconceito
contra os portugueses.
Indigna-me a insensibilidade social de Passos Coelho,
que muitas vezes se evidencia na frieza com que fala do "ajustamento
interno" (que, traduzido para a vida prática, corresponde ao engrossar do
exército novos pobres vindos da classe média, que deixaram de poder comer peixe
e carne ou de aquecer a casa). Mas poucas coisas me deixam mais perplexo do que
o seu deslumbramento provinciano. Um sentimento comum em muitos portugueses,
que se traduz nos elogios ao que se faz "lá fora" e à autoflagelação
por coisas que "só neste País" acontecem. Um complexo de
inferioridade que é responsável por muitos dos erros que cometemos no passado
recente, a começar pela falta de sentido critico que mantivemos em todo o
processo da nossa integração europeia. Mas como Passos Coelho a coisa chega a
um ponto que roça o racismo contra nós próprios. Se isso seria incómodo em
qualquer cidadão, num primeiro-ministro de um país em crise, deprimido e
intervencionado por instituições externas, é assustador. Como pode o governo
negociar com outros Estados e instituições externas se o homem que o dirige é o
primeiro a produzir o argumentário e a reproduzir os preconceitos que são
usados contra o seu próprio povo?
No passado, quando Portugal ainda tinha um Império,
usava-se um termo para os mestiços assimilados, que supostamente queriam ser
considerados "civilizados". Eram os "calcinhas". Apesar da
ter várias leituras, conforme quem a usava, a expressão era geralmente
pejorativa e carregada de preconceito. O africano podia fazer o esforço para se
vestir como o branco, falar como o branco e até pensar como o branco. Podia
também ser mais instruído que o colono vindo das berças. Aos olhos do branco,
nunca seria um deles. Um "preto de calcinhas", mas um "preto".
É uma coisa que o nosso "calcinhas" um dia perceberá sobre si próprio
e o papel que decidiu desempenhar nesta Europa em crise: que se pode esforçar
para repetir o que os líderes das Nações que ele considera
"civilizadas" pensam sobre esta "piolheira" e a excelente
opinião que têm - e ainda bem para eles - sobre os seus próprio Países. Pode
até dizer o que apenas o alemão mais preconceituoso pensa de nós. Será sempre
apenas e só "the nice guy", como lhe chamou Angela Merkel
quando o conheceu. Um "tuga" que gostaria de não o ser e que vive
deslumbrado pelo seu próprio "colono".
Daniel Oliveira Quinta, 27 Mar
NOTA:
Esta "guerra" ao Manifesto é na realidade estranha até porque o Governo está sempre pedindo que lhe sejam apresentadas soluções para se encontrarem pontos de encontro e acordos e afinal sempre que tal acontece entra em rotura como só ele tivesse a verdade!
Afinal a nossa democracia é muito autocrática seja qual for o partido que estiver no poder... Atente-se que este Manifesto abarca uma plêiade de pessoas dos diversos quadrantes políticos e começa a ter a aceitação até de entidades doutros países inclusivé da Alemanha!
Passos Coelho bem pode rezar que desta forma não nos levará a lado nenhum pois a jogar ao teimoso só nos levará a uma maior desgraça. Os cortes a continuarem acabará por matar "a galinha dos ovos de ouro" e depois ...