21/01/2012
Um Conto...
Naquele sábado de Dezembro, enquanto o comum dos mortais se atarefava na compra das últimas prendas de Natal, Vasco saiu de casa em busca de inspiração para o livro que não avançava. Era uma ovelha negra no presépio.
No Belém pediu um café. Instantes depois, o seu olhar cruzou-se com o de uma jovem que encostou o nariz ao vidro do estabelecimento para logo desaparecer, como se assustada com a visão de Vasco. Este deixou dinheiro a mais sobre o balcão, deu um encontrão ao casal idoso que entrava com grandes sacos de papel e correu atrás dela, ziguezagueando, disfarçando, subindo, descendo, esperando. Por fim, a mulher refugiou-se em casa. Vasco disparou pela última vez.
Sem fôlego, o nosso homem entrou no seu apartamento no 4º andar de um prédio sem elevador. O cão atirou-se às pernas. Vasco resmungou «não» e fechou-se na minúscula cozinha que transformava em laboratório fotográfico. Após alguns minutos, saiu para dar de comer ao Big impaciente. Voltou ao estúdio improvisado. Assim que obteve as onze fotos da beldade, colocou-as cronologicamente no quadro de corticite.
Sentou-se ao computador sem tirar os olhos dela, esperando…
O telefone tocou, incomodando-o sobremaneira. «Vasco? Esperamos por ti na ceia. Não te queremos sozinho na noite de Natal». «Com o Big…» - corrigiu, aborrecido. Há três anos, desde a morte da mulher, que se recusava celebrar a festa com a família ou com os amigos.
Vasco não tencionava sair nesse dia. Não queria distracções, ouvir as «deprimentes» canções de Natal. Queria trabalhar, mas, sobretudo, evitar a alegria da época. Levantou-se ao meio-dia, fez um café fraco e foi para junto da mulher fotografada na rua.
Um raio de sol penetrou no quarto, desenhando na parede pálida e bolorenta a sombra de um homem sentado frente a um computador com um cigarro aceso na boca, cotovelos apoiados nos joelhos.
Nada. Nem uma palavrinha. Não acreditava em Deus, mas fez o sinal da cruz no peito como um jogador de futebol antes de entrar em campo. Talvez resultasse…
Para seu espanto, as primeiras palavras jogaram-se no papel. Mas ao início da noite, Vasco tinha apenas meia página de trabalho.
Furibundo, saiu de casa para espairecer, protegido com um escudo anti-Natal mas permeável à chuva. Não foi longe: faltavam-lhe os cigarros. Fumado o terceiro, meteu-se no chuveiro como se entrasse numa máquina do esquecimento. Para esquecer e ser esquecido.
Mas Big precisava dele: arranhou a porta da casa de banho até Vasco lhe dar atenção.
Insultando o animal abaixo de cão, o homem vestiu-se e saiu com a intenção de levar Big a passear. Mas algo obrigou a uma mudança de planos: no hall do prédio encontraram uma alcofa. «Não é possível!?».
Pegou no bebé com mil cuidados, subiu e telefonou para a irmã: «Este ano a ceia de Natal é aqui». Desligou ignorando a surpresa do outro lado da linha.
Deste lado, num quarto frio e desconfortável, uma menina dorme sobre a cama desfeita, o cão deitado em guarda e esquecido do parque, Vasco ajoelhado e esquecido da dor.
Céu Mota, no Aventar
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3 comentários:
Linda história.
Estava já a desistir da leitura por se enfadonha e ter uma personagem que não quer adaptar-se à nova situação. a verdade da nossa vida.
Apenas aquela alcofa com o bebé me encheu de esperança. Trouxe vida e cor a todo o cenário e até mudou a ceia de Natal.
Caro Amigo Luís Coelho,
É uma grande verdade pois as crianças são a nossa Vida e Algo que nos fazem acreditar que o Mundo cresce e avança...
Um abraço amigo e solidário.
Olá
descobri esta história que escrevi sobre um Natal.
Obrigada pela publicação e a pachorra em lê-la!!
Céu Mota
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