Estava esta crónica já escrita, à espera da posse dos
ministros remodelados pela proposta Passos-Portas de reentendimento da
coligação, quando – como todos os comentadores e agentes políticos – fomos
surpreendidos pela comunicação ao país de 10 de Julho do Presidente da
República. Mas vamos por partes.
Como fenómeno observável por comentadores e analistas,
o tropeção ocorrido na vida política portuguesa nos primeiros dias de Julho foi
um case study. A carta de despedida do ministro Gaspar é uma notável
peça, reveladora da maneira como funciona um governo e de como um tecnocrata
como ele, que não é um político profissional, sai vencido pelas insídias de
colegas, pelas resistências institucionais opostas a qualquer mudança mais
profunda que se tente fazer e, finalmente, pela própria consciência dos limites
das suas capacidades face aos insucessos obtidos em vários domínios decorrentes
da actuação tida (sobretudo na economia e no emprego). As cenas da tomada de
posse da sua substituta (com um caso de swaps à perna), da “irregovável”
demissão de Paulo Portas, da subsequente declaração ao país de Passos Coelho
(“não me demito”) e do atabalhoado processo que se seguiu levou muitos
observadores a falarem de “garotices”.(…)
(…)O problema é que essa lógica e essa racionalidade
se definem em relação aos interesses de poder próprios de cada um desses
actores – sejam individuais, de “grupo” ou partidários – e não, de maneira
nenhuma, em relação a um qualquer tipo de “superior interesse nacional”, chavão
discursivo com que, não obstante, somos por eles bombardeados a cada passo.
De facto, nessas acções: as informações da conjuntura
internacional (económica, diplomática, europeia, etc.) estão presentes “como
contexto”; os dados que vão sendo divulgados sobre o andamento da vida
económica e financeira do país estão igualmente presentes “como contexto”; as
barreiras legais que o Tribunal Constitucional e outras instâncias judiciárias
vão erguendo a determinadas medidas decretadas pelo governo são encaradas como
“constrangimentos do contexto”; as negociações da “concertação social”, as
tomadas de posição dos “parceiros sociais” e os pronunciamentos do Conselho
Económico e Social ou do Provedor de Justiça são ainda tomados em conta no
quadro da “análise política de situação”; idêntico tratamento é dado aos scores
das sondagens de opinião e aos movimentos de protesto nas ruas (cujos líderes
decerto estarão sob vigilância dos “serviços de informação” e serão objecto dos
seus relatórios secretos); e as tomadas públicas de posição das forças
partidárias da oposição são igualmente consideradas como “elementos de análise
da situação”, o mesmo acontecendo com as posições, públicas ou ditas com
reserva, do Presidente da República.(…)
(…)Isto aplica-se ao PSD e ao CDS que há dois anos
assumiram a governação, mas igualmente ao PS, como putativo aspirante a tomar
parte no próximo governo, que nem esse tempo demorou a considerar esquecidas as
responsabilidades do consulado de Sócrates no avolumar da crise e a cortar a
hipótese de uma solução de “salvação nacional” com a sua imprudente declaração
(mas reveladora do que o move) de que só regressaria ao governo após novas
eleições. Este foi um erro de palmatória só explicável pela fragilidade do
líder e pelas pressões internas para voltar ao poder a qualquer preço e o mais
rapidamente possível, sem o mínimo “exame de consciência” das suas
responsabilidades pelas práticas políticas desenvolvidas desde há longos anos.(…)
(…)As reacções bolsistas e “dos mercados” a esta
mini-crise governativa de Julho mostraram talvez a muita gente o que se seguirá
à convocação de eleições antecipadas, com o inerente adiamento da próxima
avaliação da “troika” e congelamento do respectivo cheque, da
inevitável “reforma do Estado”, da execução e da preparação do orçamento, de um
prolongado governo-de-gestão com as datas do resgate de vultuosos empréstimos a
aproximarem-se, etc. – sabendo nós ainda por cima que, de novas eleições (já,
ou mais adiante) só sairá uma legitimidade governativa mais abalada devido a
uma ainda mais fraca participação eleitoral (modo que resta aos cidadãos para
expressarem a sua crítica aos principais partidos políticos), e de novo uma
complicada negociação inter-partidária para a formação de um governo e a
fixação de um qualquer programa de actuação, que nunca poderá ser muito
diferente do actual, vista a envolvente externa.
A “saída democrática” que todos
dizem ser o modo de resolução de um impasse político – as eleições –, sabemo-lo
de antemão que nada resolve enquanto tivermos este sistema partidário,
que é um dos principais responsáveis pela crise actual e tem até agora mostrado
ser incapaz de se auto-reformar.(…)
(…) Mas as soluções para que apontam (como, de resto,
em parte, o próprio PS, enquanto partido de oposição) nada ajudam a perceber
qual seria a “outra política” que poderia reverter a crise actual – a menos que
fosse o empobrecimento radical resultante de uma saída abrupta do Euro,
transformando-nos numa espécie de Albânia da Europa ocidental (que aliás já
constituiu um modelo ideal para alguns dos ex-maoistas que agora nos governam).
Como escreveu Paulo Trigo Pereira (no Público de 7.Julho.2013), julgamos
que “Portugal não tem, nem terá proximamente, crescimento económico que
sustente simultaneamente o Estado social tal como hoje existe, a regionalização
e municipalização no figurino actual, os juros da dívida pública, os encargos
com as parcerias publico-privadas e um sector público empresarial que se mantém
deficitário”. (…)
(…)Por tudo isto, as previsões actuais terão
de ser de pessimismo. A não ser que, por uma “iluminação” fantástica e
surpreendente, a “classe política” cortasse 30% nos seus vencimentos e todos os
benefícios-de-função, e reduzisse significativamente o número de deputados,
vereadores, assessores e outros estipendiados pelo orçamento público, para que
pudesse apresentar-se perante o povo com alguma credibilidade no pedido de
sacrifícios.
JF / 11.Jul.2013
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