"Vós que lá do vosso império, prometeis um mundo novo...CUIDADO, que pode o povo, querer um mundo novo a SÉRIO!" In: António Aleixo

20/03/2014

Porquê Putin se quere apoderar da Crimeia





No conflito da Ucrânia existem interesses objectivos em jogo, como é o caso dos gasodutos e os seus enormes proveitos económicos. Mas o essencial é que estes interesses são inseparáveis da recuperação nacionalista agora liderada pelo Kremlin.


O que estamos presenciando hoje na Ucrânia é, mais do que o regresso da guerra fria, o início do choque de civilizações na actual era pós-americana.

A globalização encabeçada pelos Estados Unidos desde a queda do muro de Berlim produziu a convergência de modelos de crescimento económico e a difusão da tecnologia por todo o mundo, com a conseguinte ascensão de economias emergentes como a China, a Rússia, a India, a Turquia e outros Países. Mas essa convergência, em lugar de criar um mundo plano e homogéneo, acentuou as diferenças porque a força económica criada engendra uma reafirmação cultural, política incluindo, claro, a militar.

Como se vê diariamente no mar da China Oriental, Síria ou Crimeia, o Ocidente já não tem as rédeas da ordem mundial. Mas também ninguém as tem. A globalização significa, sobretudo, a interdependência de múltiplas identidades.

Na sua reafirmação inicial, os emergentes pretendem reviver as suas identidades tradicionais ou “comunidades orgânicas” do passado, pelo que o seu apregoado nacionalismo e a sua energia política são uma reacção à humilhação, tanto real como imaginária, infligida pelo Ocidente quando dominava.

Para Isaiah Berlin é muito claro que o nacionalismo agressivo constituiu a reacção, é “a erva que ressurge” após ter sido espezinhada. Hoje pode ver-se na China neo-confuciana o reforço do seu poderio militar no este asiático; e na Turquia neo-otomana; no regresso do fundamentalismo hindu à medida que se aproximam as eleições na India.
O presidente russo encolhe os ombros perante a ameaça de expulsão do G-8.
Nas últimas semanas, é Vladimir Putin, que se apodera da Crimeia com a desculpa do direito de proteger os seus habitantes, a sua língua e a etnia russa em nome do renascimento da civilização ortodoxa e eslava.

É claro, que existem interesses objectivos em jogo, como sejam os gasodutos e os seus proveitos económicos. Mas a característica fundamental neste momento é que esses interesses são inseparáveis das ideias de recuperação cultural nacional.

The Washington Post reportava num blogue recente que, aproveitando o motivo do Ano Novo, Putin enviou uma lista de leituras recomendadas aos governadores regionais da Rússia, na qual figuravam os filósofos preferidos do renascimento espiritual nos princípios do século XX: Nikolai Berdiaev, Vladimir Soloviev e Ivan Ilyin, que também subscreve e cita nos seus discursos públicos.

No estilo de Dostoieski, e mais tarde de Aleksandr Solzhenitsyn, todos eles se consideravam apoiantes do modo de vida russo. Místicos cristãos-ortodoxos, preocupava-os que a democracia abalasse a nobre alma russa – preferiam a monarquia ou a autocracia como guardiãs da família e da sociedade – já que a cultura cosmopolita do Ocidente materialista poderia vir a contaminar o seu espírito. Além de que, tinham uma fé messiânica no destino euro-asiático da Rússia como civilização situada entre o Oriente e o Ocidente. (Há que dizer que Soloviev, mais à frente, foi um liberal de estilo não ocidental e se opôs à russificação forçada e à discriminação das minorias no seu país).

Ao venerar e promover estes pensadores, é como se Putin se creia ser Vladimir o Restaurador, devido à humilhação sofrida pela Rússia desde a guerra fria, que classificou como “a maior catástrofe” da história russa.

Desde logo, Ilyin detalhou a tarefa histórica que Putin considera sua. “Confiamos que chegue o dia em que a Rússia se eleve após a sua desintegração e humilhação e inicie uma nova era de desenvolvimento e grandeza”, escreveu.
O Ocidente poderia considerar esse sentimento de contaminação e humilhação como prova da paranoia de um autocrata elouquecido, se não fora ter sido um sentimento comparticipado por dois dos seus favoritos na época da guerra fria, Aleksandr Solzhenitsyn e Mijail Gorbachov.

O próprio Gorbachov acabou ressentido com o Ocidente, no que se via ser um “complexo de vencedor”.

Solzhenitsyn voltou do exilio para a Rússia durante a dissoluta presidência de Boris Yeltsin, no período da maior debilidade da Rússia, no que foi convidado a integrar-se no G-8 e no mundo.
Uma vez aí chegado, Solzhenitsyn pouco demorou a achar que as liberdades, a permissividade e o consumismo desregrado de aqueles anos eram catastróficos para a maneira de ser russa. Chegou mesmo a dizer: “A glasnost de Gorbachov tudo arruinou”.

O próprio Gorbachov acabou ressentido com o Ocidente, que acusava de o ter atraiçoado e ter “complexo de vencedor”. Quando o entrevistei em Moscovo em 2005, no vigésimo aniversário das suas reformas, disse-me:
“Os Estados Unidos não tiveram para connosco o devido respeito. A Rússia é um parceiro sério. Somos um país com uma grande história, com experiência diplomática, com formação que tem feito grandes contribuições científicas”.
“ A União Soviética não era só um adversário, mas sim um parceiro do Ocidente. O sistema tinha assim um certo equilíbrio”.
“Estávamos dispostos a construir uma nova estrutura de segurança para a Europa. Mas após a dissolução da União Soviética e do Pacto de Varsóvia, a OTAN esqueceu as suas promessas. Tornou-se numa organização mais política que militar, sempre disposta a intervir em qualquer lugar ‘por motivos humanitários’. E vimo-los intervir não só na Yugoslávia tal como no Iraque, sem nenhum mandato nem autorização das Nações Unidas.”.

Através desta apaixonada perspectiva da restauração russa, pode parecer lógico que Putin agradeça a ameaça de expulsão do G-8. De facto, encolheu os ombros quando tal lhe foi perguntado numa recente conferência de imprensa. E o presidente do comité dos Exteriores na DUMA, Alexei Pushkov,  alertou, com razão, que hoje o G-20 substituiu já o G-8 e que é mais importante o que a China e a India vão fazer, não só na Europa como nos Estados Unidos.

Putin parece compreender que a geopolítica da identidade dos países tem limites num mundo interdependente. Ao ser-lhe perguntado nessa conferência de imprensa como reagiria a Rússia às sanções do Ocidente pela sua intervenção militar na Ucrânia e Crimeia, ele respondeu: “ Quem fala de sanções deveriam em primeiro lugar pensar nas suas consequências… No mundo moderno, onde todos se encontram tão entrosados e onde todos são tão dependentes uns dos outros, claro que é possível fazer danos a outros, mas sempre será um dano mutuo”.

Os novos conflitos, do mar da China Oriental até à Crimeia indicam que necessitamos encontrar uma nova via híbrida, que não tolha as diversas identidades mas sim que fechem em vez de abrir as fronteiras que as excluam em vez de as acolher.

A alternativa, escreve a novelista turca Elif ShafaK  no The World Post, é “um novo cosmopolitismo” que sirva de antídoto contra o perigoso impacto da xenofobia e do nacionalismo em todo o planeta.
“Em vez de limitarmos a oposição binária da política identitária, devemos fazer o contrário, multiplicar as nossa adesões e filiações”, escreve. “ Eu sou de Istambul, sou do Egeu, do Próximo Oriente, da Ásia, dos Balcãs, da Europa oriental, da Europa e de nenhuma parte do mundo inteiro. Quanto mais definições tenha uma pessoa, mais probabilidades tem de que a sua identidade se contraponha com outra. As identidades coincidentes unem as pessoas e reduzem as tensões, o ódio e os nacionalismos. É mais difícil odiar outro quando pensamos que temos muitas coisas em comum”.

A ténue esperança para o futuro é que se possa ser capaz de evitar a desintegração e o conflito violento enquanto se superam as humilhações e se revivem as identidades nesta primeira fase da ordem mundial pós-americana. Então será possível uma interdependência mais equilibrada das diversas identidades que as harmonize quer mundial quer localmente, apoiada em instituições, normas e numa cultura mista de cidadania mundial.

Mas não existem garantias de que 2014 não vá converter-se num novo 1914 que nos devolva ao ponto de partida.

Nathan Gardels é director do The World Post.
 

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