Se a justiça falhar na sua missão de punir ou absolver rapidamente os arguidos, pode estar em causa o regime democrático. O processo denominado Face Oculta diz respeito a uma alegada rede de gestores para conseguir contratos em várias empresas participadas pelo Estado. No mandado de busca ordenado aos vários arguidos, o Ministério Público e a Polícia Judiciária falam de uma alegada "rede tentacular" que, a troco de vantagens patrimoniais e não patrimoniais, terá exercido a sua influência junto de titulares de cargos governamentais e políticos, titulares de cargos de direcção com capacidade de decisão ou com acesso a informação privilegiada no sentido de favorecer um grupo de empresas, pertencentes ao arguido Manuel Godinho, entretanto preso preventivamente.
Numa ocasião em que se tornam mais visíveis as redes de corrupção e tráfico de influências, há muito instaladas e prosperantes na administração central, local e empresas do Estado, contam-se pelos dedos das mãos os políticos ou os gestores que têm denunciado às autoridades judiciárias esses desmandos. Saliente-se, como exemplo, a conduta do presidente da Câmara do Porto ao denunciar um engenheiro da câmara que, alegadamente, exigia centenas de milhares de euros em troca de favorecimentos num concurso público. Fica o exemplo de quem impõe princípios de rigor e ética na relação entre o poder político e os poderes económicos. Por isso, são muitos os que têm reclamado leis mais severas para a corrupção e a retoma de algumas medidas propostas pelo ex-deputado João Cravinho , como por exemplo:
- Criminalização do enriquecimento ilícito;
- Fim da distinção entre corrupção para acto lícito e ilícito;
- Criação da medida de coacção de apreensão de bens, quando existem fortes indícios de que o património do arguido é manifestamente superior aos seus rendimentos;
- Formação de uma comissão de prevenção da corrupção, a funcionar junto da Assembleia da República.
O objectivo será tornar mais eficaz a actual lei que parece desajustada à realidade, enfraquecendo a capacidade de resposta do sistema penal, face à complexidade deste tipo de crime. Sabendo-se como se sabe que muita da corrupção surge através de "favores" e "prendas" a quem trabalha na esfera pública e tem poder de decisão, importa levar a cabo, nesta matéria, medidas concretas de proibição destas práticas, criminalizando-as.
É suposto que os partidos procedam a uma fiscalização pública permanente das actividades governamentais e administrativas locais, forçando os detentores do poder e decisão a conter-se e a explicar-se. Mas, os partidos, sobretudo a nível autárquico, transformaram-se em oligarquias impedindo a comunicação imediata e fecunda entre governantes e governados, começando a monopolizar em seu proveito os benefícios do poder. O combate à corrupção pertence a todos os portugueses. Por isso, é urgente que todos os cidadãos pugnem decididamente pela exigência da ética e transparência na vida política, sobretudo nos sectores onde tem sido mais visível a sua ausência. A Associação Cristã de Empresários e Gestores (ACEGE) publicou um Código de Ética Empresarial com o objectivo de pugnar pela luta activa contra todas as formas de corrupção "eliminando qualquer forma de pagamentos, favores ou cumplicidades no sentido de obter vantagens ilícitas, tendo particular atenção a todas as formas subtis de corrupção, como, por exemplo, as ofertas ou recebimentos de clientes e/ou fornecedores". O referido código abrange matérias como "a ética pessoal e profissional", "obrigações éticas na acção empresarial" e "transparência da actuação das empresas". Será que os responsáveis pelas empresas do Estado e das autarquias estão dispostos a aderir aos valores e princípios contidos neste documento e a procurar a aplicá-los e divulgá-los?
A face visível da corrupção em Portugal, a nível da sua amplitude, ainda estar por estudar, mas, a avaliar pelo que se vai conhecendo e atento o seu carácter tentacular, tudo leva a crer ser de grandes proporções. Se a justiça falhar na sua missão de punir ou absolver rapidamente os arguidos, poderá estar em causa o regime democrático. Foi com este tipo de sociedade, de fraude, corrupção e clientelismo político, que a 1ª República deu causa a uma ditadura de quase 40 anos.
Os portugueses esperam que o processo Face Oculta, a correr termos na investigação criminal, dê lugar à "Face Visível" da corrupção e os culpados, se os houver, sejam devidamente censurados pela opinião pública e punidos pela justiça.
Narciso Machado – 20091113, Juiz desembargador jubilado
2 comentários:
Um estudo bem apresentado.
Mas falta sublinhar que o dinheiro sai do Estado, dos bolsos dos contribuintes, pois as empresas ganham e os corruptos passivos também, porque os concursos ficam mais caros do que deviam e os trabalhos ficam de calor inferior ao que o Estado paga.
O Godinho pode não ser o cérebro da Face Oculta mas sim a rede de corruptos passivos que o orientam de forma a ele canalizar para os seus bolsos grossas quantias. A rápida ascensão do Vara apoiado pelo seu amigo Sócrates é uma parte importante dessa rede, bem como muitos do grupo de Macau.
Para o sistema se limpar seria necessário que os poderosos estivessem dispostos a perder essa fonte de rendimentos.
Por outro lado, a burocracia exagerada incita à corrupção por dar pretexto para as prendas e presentes destinados a abreviar o que é demorado. A rapidez das decisões do Freeport evidenciam a forte corrupção que foi praticada...
Não tenho esperanças de a Face Oculta ter um desfecho que elimine razões para fortes suspeitas permanecerem no espírito de pessoas pensantes.
Um abraço
João
Caro João,
Infelizmente tens razão!!! Não acredito na nossa justiça!!!
Um abração.
Enviar um comentário