«Um indivíduo está aborrecido com o emprego que tem, ou precisa
de emprego ou ambiciona, por razões óbvias, ganhar mais. As coisas correm-lhe
cada vez pior e as empresas privadas não o querem. Esclarecidamente, o
indivíduo pensa no Estado, a que supõe o dever de lhe dar uma ocupação e
proventos compatíveis. Não encontra nada ou o que encontra não o satisfaz.
Deste fracasso o indivíduo retira a conclusão de que o Estado
não cumpre cabalmente as suas funções. Os seus enormes talentos merecem com
certeza ser usados e seriam com certeza usados por um Estado que se prezasse. O
indivíduo concebe então o plano simples de conseguir que o Estado reconheça a
sua utilidade. Procura dentro de si sinais de distinção. Depressa se descobre
uma especialidade, um amor, uma causa. Digamos, por exemplo, a casa portuguesa.
A casa portuguesa típica, que lhe despertou sempre surtos de
paixão, desaparece lentamente da paisagem. As câmaras não a protegem; a
Fundação Gulbenkian ignora-a; o público despreza-a. A preservação da casa
portuguesa constitui um interesse social, digno da atenção do Estado. Aliás,
todos os interesses sociais são dignos da atenção do Estado. O indivíduo decide,
portanto, persuadir o Estado a encarregá-lo de preservar a casa portuguesa, tão
ameaçada pela incúria, por autarcas néscios e pelos emigrantes.
Convoca três amigos: dois arquitectos e um autoproclamado
sociólogo, como ele convencidos da sua importância e carentes de uns dinheiros.
Os quatro põem-se em campo. Trata-se de obter acesso a um ministro ou a um
secretário de Estado, através de relações pessoais ou de influências
partidárias. O ideal é escolhê-lo num departamento com objectivos tão etéreos e
brumosos como a própria preservação da casa portuguesa: a Cultura, a Qualidade
de Vida, a Família, o Ordenamento Territorial, a Paz nas Consciências. Em
rigor, qualquer serve, mas estes apreciam em particular os projectos
fantásticos.
Imaginemos que o indivíduo e os três amigos se apoderam do
ministro da Cultura. Tal ministro, principalmente se, como com frequência
sucede, é analfabeto ou quase, jamais se atreverá a manifestar indiferença seja
pelo que for que se lhe apresente como Cultura (com C grande). No
"Botequim", Natália Correia vela. A esperteza reside em que tudo
lhe pode ser apresentado como Cultura, até Natália Correia e a preservação da
casa portuguesa. Intimidado, aflito, prevendo críticas devastadoras à sua
relutância em preservar a casa portuguesa, o ministro rende-se. Discretamente,
e supondo assim desembaraçar-se do sarilho, nomeia por despacho uma Comissão
para a Preservação da Casa Portuguesa, com o indivíduo e os três amigos, que
passam a receber a remuneração mensal de cento e cinquenta contos, para o
chefe, e cem cada, para os comparsas.
Ganhou-se a primeira batalha. O indivíduo adquiriu uma posição
oficial. O próximo passo consiste em montar um cerco ao gabinete do ministro
para lhe subtrair "espaço", isto é instalações. Como preservar a casa
portuguesa nos corredores ou nos cafés? Sem telefones? Sem um sítio para
guardar os papéis e atender pessoas? Os argumentos parecem racionais, a
reivindicação justa. Comprometido no princípio, o ministro volta a render-se. A
Comissão para a Preservação da Casa Portuguesa instala-se em duas assoalhadas,
num canto obscuro do ministério.
Daí reclama telefones, um contínuo (para recados), uma
escriturária-dactilógrafa e um técnico de terceira, destacados de outros
serviços ou contratados de fresco entre familiares indigentes. Como recusar
pedidos tão lógicos e triviais? Existe a Comissão, existem duas assoalhadas: o
resto segue-se. O trabalho vai, enfim, começar a sério.
A Comissão produz, após esforços esplêndidos, um documento de
dezassete páginas, com título de: "A Preservação da Casa Portuguesa:
Vectores de uma Problemática, a Nível Urbano e Rural". Forte de semelhante
obra, entra na matéria. Pouco a pouco, estende os seus tentáculos. Ocorre-lhe
desde logo que os seus objectivos são intradepartamentais. A casa portuguesa
também é da responsabilidade dos ministérios das Obras Públicas e Habitação, da
Qualidade de Vida e dos Assuntos Sociais. A Comissão exige, por consequência,
que se forme uma subcomissão com "representantes qualificados dessas áreas",
e que se lhe atribuam os respectivos subsídios. Requisita, evidentemente, um
carro para as tarefas de coordenação (e para ir a Sintra aos domingos). Mas não
se esquece nem das autarquias nem dos emigrantes. Cheios de zelo, os seus
membros partem para a província, enquanto o chefe, com mais majestade, "se
desloca" às colónias portuguesas no estrangeiro, com o objectivo de
esclarecer os emigrantes sobre as vantagens de "manter o perfil" das
nossas queridas aldeias.
Entretanto, o chefe já informou o ministro da impossibilidade
física de prosseguir estas enérgicas actividades em duas meras assoalhadas. Em
luta dura com várias direcções-gerais, institutos e gabinetes, a Comissão acaba
por conquistar mais cinco e aumenta o seu pessoal de sete para vinte e sete. Chegou
a altura de se ocupar da decisiva questão dos "contactos
internacionais". A inutilidade notória do exercício assegura que a
Comissão brilhará. No Conselho da Europa, na UNESCO, em viagens diplomáticas à
Assíria e ao Daomé, o chefe e os sócios discutirão moções, aprovarão
recomendações, estudarão acordos de intercâmbio, comerão jantares e tirarão
retratos. O mundo ficará sabendo que Portugal, país civilizado, se preocupa com
a preservação da casa portuguesa. O orçamento da Comissão subiu de três mil contos
por ano para cinquenta mil, o que a torna uma coisa digna de respeito e, pelo
menos, de uma condecoração da Embaixada Francesa.
A Comissão, porém, é precária. Não tem lei orgânica e não tem
quadro. Acima de tudo não tem quadro. Os seus membros e empregados vivem no
risco de despedimento, o que compreensivelmente os perturba, impedindo-os de
trabalhar como gostariam. Para eles, os seus inestimáveis serviços justificam,
mais, clamam, que lhes seja concedida segurança e aposentadoria. O ministro da
Cultura entende esta angústia, porque aprecia que os seus subordinados o
estimem. O ministro das Finanças, que não entra no ministério da Cultura, não
se comove tanto. Mas é-lhe explicado o alcance da preservação da casa
portuguesa, a sua indispensabilidade, o prestígio que a Comissão adquiriu em
Bogotá e em Munique, e ele contrariadamente cede.
A Comissão transforma-se, deste modo, em Instituto para a
Preservação da Casa Portuguesa, com um quadro de oitenta lugares, sendo
cinquenta instantaneamente preenchidos. Muda de instalações, recruta
telefonistas, motoristas, contínuos, técnicos, conselheiros, assessores. Gasta
agora duzentos mil contos. O chefe inscreve-se no PSD e fala-se discretamente
dele para secretário de Estado, em parte por causa de um livro de excessivo
mérito chamado "A Preservação da Casa Portuguesa: Vectores de uma
Problemática, a Nível Urbano e Rural".
A moral da história é a seguinte: se amanhã desaparecessem
duzentos mil funcionários públicos, ninguém, excepto os próprios, daria por
nada. Ou daria - daria porque pagava metade dos impostos.»
Vasco Pulido Valente
(Diário de Notícias, 5 de Fevereiro de 1984)
NOTA:
Este artigo com quase 30 anos ainda está actual!
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