«Uma pessoa entra no mundo das fundações (de qualquer género) e
fica estupefacta com a desordem e a estranha ambiguidade a que ele chegou. Que
se trata de meter a mão no saco do Estado e no bolso do contribuinte: nenhuma
dúvida. Mas não se esperava os requintes de invenção e tortuosidade da coisa. O
assunto, em que a imprensa mal tocou, merecia um livro de mil páginas não um
artigo de 30 linhas.
Comecemos pela Gulbenkian (pedindo desculpa a Artur Santos Silva
que só lá entrou ontem). Mas quem me explica a mim por que misteriosa razão a Gulbenkian (que
é uma das fundações mais ricas da Europa) recebeu do Estado, entre 2008 e 2010,
13 483 milhões de euros? E quem me dá uma justificação aceitável do facto inaceitável de
a Gulbenkian continuar a ser uma "fundação pública de direito
privado", em vez de ser, numa sociedade democrática, simplesmente uma
fundação de direito privado, quando com o estatuto que tem agora o governo
pode, quando quiser, "designar ou destituir a maioria dos titulares dos
órgãos de administração"?
E quem me explica a inexplicável existência da Fundação Caixa
Geral de Depósitos (a Culturgest)? Não é a Caixa um banco do Estado? Não há no
Estado uma Secretaria ou um Ministério da Cultura?
Ou a existência da Fundação Batalha de Aljubarrota (que nos gastou
desde 2008 a 2010, um milhão e 900 mil euros) dedicada a
"reconstruir" (palavra de honra) o "campo militar" e as
"circunstâncias" (não estou a inventar) desse memorável combate (que,
de resto, a tropa inglesa ganhou por nós?
Ou a da Fundação Navegar (800 mil euros no mesmo prazo), que
pretende o "desenvolvimento cultural artístico e científico de
Espinho"?
Ou a Fundação Carnaval de Ovar (750 mil euros), que sempre foi,
como se sabe, um acontecimento mundial?
Ou dezenas de outras fantasias, quase todas sem o mais leve senso
e todas sem o mais leve escrúpulo. Este espaço não basta para contar e analisar
a história aberrante das fundações. Mas basta para dizer que o Estado (ou seja,
a maioria dos governos democráticos) deixou crescer este monstro e o alimentou
durante mais de 30 anos, sobre as costas do cidadão que hoje resolveu
patrioticamente espremer.
E também chega para notar que os pretextos mais comuns desta razia
silenciosa e prática, sempre invocada em tom indiscutível e beato, são dois,
cultura e artes, com a ciência a grande distância. Isto é, as
fundações servem fundamentalmente para recolher e sustentar a iliteracia e a
ignorância indígena (por exemplo 13672 funcionários nas fundações que Passos
Coelho pensa fechar). E o que é que sucedia ao País se ele amanhã parasse de estipendiar
esta turba sem nome? Nada, queridos portugueses, rigorosamente nada. E talvez, com isso, o
governo adquirisse alguma confiança e dignidade.»
In Público
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